terça-feira, 24 de agosto de 2010

Revirando o baú



É, amiguinhos, ando espaçando demais as postagens. Muito trabalho, muita aula, muita redação, pouca vida virtual. Revirando o baú, achei algo que resolvi postar hoje. É das antigas; sem data, mas pelo conteúdo, ouso afirmar que deve ser de 1999. Aqui vai exatamente como o original, com a citação (sem fonte!) e tudo:


"A sala absurdamente quente, insetos voando com inconveniência. Chego atrasada e com pouca vontade, arrumo um lugar cheio de pó de giz. E tento entender o que acontece. Murilo Mendes, poesia impenetrável, impermeável. Mas a voz, a voz que a dizia... Calor. Sono vindo como a única fuga possível do inferno. Tento não sucumbir porque às vezes ele me olha. Mesmo num canto cheio de pó de giz e só a mim pertencendo, ele me olha. Como olha para os demais, é claro. Aquele corpo grande, um homem alto, quase loiro. Jeito de experiente. Uma aparente timidez e um prazer em dizer o que diz. Vai e volta ao redor da mesa de maneira irritante. Calor e mal estar. Mas ele olha de novo, não, não posso sair. Aquela voz, voz firme e suave, quase doce. Vai e volta, levemente curvado, talvez pelo peso do que só ele deve saber.

Poesia sensual. Ele esboça um riso tímido. Qualquer interpretação seria arbitrária, o poema não permite, lisol, que raio é lisol? Camisa e calça jeans. Eu na minha saia e blusa, tentando mal sei o quê, mas muito cara de secretária, acho que não funciona. Apóio a cabeça nas mãos, meu rosto se contrai de dor, uma dor que só o calor me causa. Dor pelo inferno iminente do próximo verão. Dor perturbando minha mente, eu tento, quero entender, li “A Sagração da Primavera” e me fascinei. Tudo bem que passei a noite lutando no front, derrubando helicópteros. Eu sou assim, leio e sonho a noite toda.

Digressões. Ele faz isso o tempo todo, mas exalando paixão por fazê-lo. Eu em delírios, neurônios em pane, superaquecidos. O assunto está bom, quero entender, mas não é só o inferno tropical que me tira o ar. A voz, a voz, sua voz e penso o impossível. Não me importa se é comprometido ou não, eu o desejo como for, quero-o por um momento. Ele nota minha expressão de dor. Calor, vertigem. Muito quente. Imagino-o, imagino a mim junto dele, meu corpo colado no dele, sua voz, sua respiração. Que perfume será que tem? Que será que costuma dizer a uma mulher? E Murilo Mendes impenetrável. Tem Prometeu como inspiração. Que faço do que desejo, que faço dessa distância, desse abismo que me atrai?

Fim da aula. Entrego meu trabalho, digo qualquer coisa sem sentido só para ter por segundos sua atenção. Não consigo olhá-lo nos olhos. Demoro a sair da sala, limpo o pó de giz do meu inútil casaco e de minha pasta. Despeço-me quase invisivelmente; porém ele vê e retribui. Então, sei que ele .

Vou ao xerox. Tiro cópias encomendadas de bobagens, procuro um texto para trabalho. De repente, ele ao meu lado. Desmorono, perco o rumo. Junto o que é meu e nesse tempo ele desaparece.

Vou embora por caminhos noturnos e perigosos. Há muito tempo não andava pela grama escura e sinistra sozinha. Perigoso é o que tenho feito do que sinto. Perigosos são os caminhos da minha vida.


'Sem esperança, não surge o inesperado.'"