Você se lembra daquela camisa xadrez? Aquela que você me deu num longíquo dia dos namorados? Pois é, eu a encontrei no fundo do meu guarda-roupa, depois das blusas dobradas, embaixo do jeans que preciso consertar, ao lado daquele tubinho azul que minha mãe fez para mim e que eu usava na época em que nos víamos. Aliás, são as duas únicas peças que guardo de um passado tão distante.
Vez ou outra eu ainda a uso, apesar de já se somarem uns anos depois da última vez. Ela é de um conforto aconchegante que não sei explicar. De flanela macia, mangas longas, vermelha, bege e com detalhes azuis. Você me deu porque eu sempre aparecia vestindo uma camisa xadrez do meu pai, e você achou que já estava na hora de eu ter a minha. Era uma peça comum naquele tempo, principalmente para quem ouvia rock. A tal moda grunge, cujo gosto não comentarei, que se restringiu àqueles poucos anos e aos acordes de algumas incríveis bandas de Seatlle, dos Estados Unidos.
Eu a vestia invariavelmente com uma regata preta por baixo, jeans e botas. Era quase um uniforme. E a usava para ir a todos os lugares, inclusive, é claro, para vê-lo. Estava começando a me posicionar no mundo e a entender que ser diferente podia ser uma coisa boa, da qual eu poderia até me orgulhar, e não somente motivo de piada na escola. Assim eu ia criando minha identidade.
E você parecia gostar de quem eu era. Aquela garota meio avoada e responsável, que levava as coisas muito a sério, mas sempre sorrindo. Uma garota de livros, rock, amor e lágrimas. Você vivia me elogiando quando eu vestia a camisa xadrez em nossos curtos encontros, que se espremiam entre a escola e o trabalho. Intensos encontros! E foi essa mesma camisa xadrez que me levou ao caos emocional durante quase dois anos.
Para mim, fim era fim e acabou. Nada de idas e vindas. Nada de recaídas. E nós terminamos. Eu não o procurei mais. Até o dia em que cheguei da escola e soube que você havia me ligado. É claro que retornei, numa esperança louca. Você me pediu a camisa emprestada. Eu a levei para você e não vi nada nas entrelinhas daqueles minutos juntos. Esperei você me procurar para devolvê-la. E o dia que você me devolveu foi minha glória e minha ruína. Uma recaída, mais sua do que minha. Os dias que se seguiram foram longos e difíceis.
Mas passou. E a camisa assistiu a tudo - se é que isso é possível. Passou o grunge, passaram os 90, passaram as pessoas em nossas vidas. Passou a vontade de vesti-la o tempo todo, como marca da minha pequenina revolução pessoal. Aqui nós estamos.
A última vez que a usei foi no show do Pearl Jam, uma das últimas bandas grunge sobreviventes; um pequeno portal do tempo. Foi estranho, porque naquele dia de dezembro muita gente circulou pela cidade com camisas xadrez. E depois, ela retornou ao esconderijo no guarda-roupa.
Ontem, dez graus à noite. Eu procurava algo quente e aconchegante para vestir. Lá estava ela, no fundo do meu guarda-roupa, depois das blusas dobradas, embaixo do jeans que preciso consertar, ao lado daquele tubinho azul que minha mãe fez para mim e que eu usava na época em que nos víamos. Vou guardar o tubinho. Vou guardar a camisa. Não sou mais de guardar tranqueiras do passado. No entanto, quero chegar aos oitenta e ter algo com cheiro de mofo e naftalina que me lembre os dezessete e o início da minha transformação. E quando eu morrer, as gerações futuras, ao desfazerem meu guarda-roupa, encontrarão a camisa xadrez e exclamarão:
- Minha nossa! Que gosto duvidoso para camisas!